Casar ou comprar uma bicicleta?


Por Waleska Barbosa

'Defeito de caráter. Falha na educação. Inacreditável. Se fosse parar para ouvir o que diziam, talvez não aguentasse os comentários que passavam de engraçados a desrespeitosos, de espirituosos a jocosos. Mas era preciso assumir: aos 35 anos não sabia andar de bicicleta. Verdade.

Nunca, nunquinha, tinha ralado o joelho numa pequena queda. Nunca, nunquinha, tinha quebrado o braço em uma descida desgovernada de ladeira. Nada de hospital, mercúrio ou merthiolate. A bicicleta nunca a havia levado a lugar algum. Nem ali, na esquina – como faz à garotada. Nem à fronteira de outros países – como faz ao aventureiro.

Tinha mesmo que ouvir aqueles comentários fossem eles engraçados, desrespeitosos, espirituosos ou jocosos. Era sina. Era destino.

Pelo menos, nas rodinhas tinha esse exemplo para dar. Era um bom mote para conversas que custavam a engrenar, com gente recém-conhecida. Era, também, a certeza de que ouviria métodos infalíveis, conselhos implacáveis, experiências de terceiros. Nessa hora era o centro das atenções e, a despeito dos motivos, isso tinha lá seus méritos. Assim, pouco a pouco, surgia intimidade nos, antes pouco à vontade, interlocutores.

Passado o burburinho, com a cabeça recostada ao travesseiro, vinha uma espécie de reflexão. Afinal, qual seria a razão de não saber andar de bicicleta?

Diariamente, via adultos se confrontando com o trânsito da cidade, via senhoras indo comprar flores, via crianças que mal davam os primeiros passos, via esportistas musculosos, via jovens conversando ou flertando lado a lado – todos, no entanto, no alto de suas bikes, como diziam os adolescentes. Menos ela.

O que fazer? Perscrutar o passado? Por que, afinal, seus pais tinham lhe negado esse sinônimo de infância? Por que não lutara contra isso? Até a publicidade deu dicas de como fazer uma ostensiva campanha para ganhar uma bicicleta. E ela, resignada, nada fizera.

Anos depois, tudo permanecia em segredo, silêncio e mistério. Jamais teve coragem de investigar a fundo quem seriam os culpados. Podia não gostar da resposta. Já era adulta. Agora, não saber andar de bicicleta não tinha tanta importância. Passava dias sem pensar nisso, sem lembrar dessa lacuna. Tinha outras prioridades, outras preocupações. Casar era uma delas. Estava passando do tempo. Ia ficar para titia. Nenhum homem iria agüentá-la. Se fosse parar para ouvir o que diziam, talvez não agüentasse os comentários que, passavam de engraçados a desrespeitosos, de espirituosos a jocosos.

Enfim, casou. Ufa, problema resolvido. Mas o marido não suportou saber que ela não andava de bicicleta. Desse jeito, argumentava, ela não poderia acompanhá-lo em passeios, fazer isso ou aquilo ao seu lado. Ela resolveu que não escolheria por um lado do ditado que dizia ‘casar ou comprar uma bicicleta’, como expressão de dúvida. Tinha certeza: queria as duas coisas.

E quase sem explicação e ainda sem entender, ela o acompanhou cidade afora. Estava nervosa, estava com medo. Mas estava pedalando. Vento no rosto, emoção. Andava de bicicleta. Era o equilíbrio. Era a calma.'

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