A utópica democracia racial
As Olimpíadas de Paris 2024, provavelmente, irritou muito os supremacistas brancos e os negros que desconhecem suas origens ancestrais e sentem-se caucasianos prisioneiros de um corpo preto, além dos machistas de todos os matizes. Mulheres negras, da periferia, de famílias sem poder econômico, atletas de diferentes modalidades, conquistaram medalhas durante a maior jornada dos esportes no mundo.
A atleta Rebeca Andrade, negra, filha de uma trabalhadora doméstica que teve sete filhos, venceu e voltou ao Brasil com 4 medalhas — uma de ouro, duas de prata e uma de bronze —conquistadas em várias etapas da ginástica artística. Beatriz Souza, negra e com peso acima do padrão — com certeza, vítima do racismo e da gordofobia —, foi a primeira atleta a conquistar a medalha de ouro no judô na jornada em Paris.
Lorrane Oliveira, preta e ginasta artística, conquistou medalha de bronze. A judoca Rafaela Silva suou para conquistar a medalha de bronze e voltar ao pódio nas Olimpíadas de Paris. Em 2016, ela foi a campeã. Ketleyn Quadros participou da vitória do judô brasileiro, na disputa por equipes, contra a Itália, garantindo o bronze para o grupo. A vitória de todas elas é uma resposta elegante aos que depreciam pessoas pretas e pardas.
Mas a realidade nacional segue cruel para mulheres negras, inclusive crianças. Elas são as principais vítimas da violência racial, do feminicídio e das agressões sexuais. Praticamente, uma reprodução do passado. Por muito tempo, o Brasil era apresentado como um país da democracia racial. Os negros nunca vivenciaram esse cenário. O padrão do país, desde o início do século 16 sempre foi, e continua sendo, uma nação racista e escravagista.
Por mais de três séculos, o Brasil foi, entre outros países, um espaço de crueldade e desumanidade imensurável. Famílias inteiras de países africanos foram sequestradas e trazidas pelos colonizadores para serem escravizadas no solo brasileiro. As relações familiares foram destroçadas. Maridos, mães e filhos foram separados entre grupos de diferentes etnias e culturas, como estratégia para evitar insurgências contra a exploração forçada da mão de obra, torturas e mortes.
O comportamento em relação aos negros no século 16 foi perpetuado. Estamos no século 21 e no cadastro das ações do Ministério do Trabalho de combate ao trabalho análogo ao de escravo, há mais de 600 empresas rurais e urbanas autuadas por esse crime ignóbil. A punição pecuniária aplicada aos empresários é leve. Ainda nos deparamos com histórias de pessoas em cativeiro. Elas trabalharam por anos a fio como domésticas e não foram remuneradas, tiveram seus direitos trabalhistas suprimidos. Para atenuar a exploração desmedida, a família insensível argumenta, diante do flagrante, que a negra era membro da família. Mentira, cinismo. A vítima era tratada como as das senzalas do passado, com violência e abusos desumanos. Mas não faltam episódios envolvendo empresas do ramo de produtos de luxo, que escravizam trabalhadores.
A realidade reafirma que os avanços conquistados ainda são insatisfatórios. Falta muito para que todos negros e negras sejam tratados com igualdade, equidade e alcancem paridade com os não negros em todos os setores sociais e econômicos. Para ilustrar, vale destacar o que ocorre no Judiciário. No ambiente de justiça, os pretos são 1,7% dos magistrados e magistradas, e os pardos pouco mais de 12,8%, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, divulgado em 2023. Nesse conjunto, as mulheres negras somam 7% na magistratura, ainda que sejam mais de 41 milhões na população brasileira (Retrato das Desigualdades — Gênero/Raça, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea). No Supremo Tribunal Federal, entre as 11 cadeiras de ministros, só uma é ocupada por uma mulher branca. Ao longo dos seus 134 anos, a Alta Corte nunca teve uma ministra negra. Na contemporaneidade, só três mulheres tiveram assento no STF. Indiscutível injustiça com no universo feminino e, principalmente, com as pretas.
Essa deformidade de gênero e raça presente na cúpula do Judiciário é paradigmática ao restante de todos os segmentos nos campos político, social e econômico, tanto públicos quanto privados. Trata-se de uma realidade em que o racismo e o preconceito em relação aos negros e, sobretudo, às mulheres afrodescendentes, ainda são dominantes e obstáculos não superados em um país, onde o povo negro corresponde a 55,5% da população, conforme o Censo Demográfico do Instituto Brasleiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Se a Justiça não é justa com a maioria dos cidadãos, quem poderá ser?
A luta contra essa infame realidade vem se mantendo por séculos. As mudanças são muito lentas. Leis são criadas e, absolutamente, ignoradas no Brasil real. Entre elas destaca-se o desprezo do poder público pela Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos ensinos fundamental e médio. Uma medida antirracista ignorada por sete a cada 10 secretarias de edução no país (71%). Essa indiferença consolida e normaliza a prática criminosa do racismo na sociedade. Prevalece o entendimento de que o povo negro é uma raça inferior, um estímulo à continuidade do comportamento e ações torpes do período escravocrata.
Em meio ao cenário de violência dominante contra pretos e pardos, surgem datas comemorativas ou de gritos coletivos para reafirmar que somos todos iguais, independentemente da cor da pele. Nesses momentos, a figura feminina é exaltada e traduz a beleza da cultura afro-brasileira, bem como a luta antirracista, as competências, o heroísmo das mulheres negras da história e da atualidade, entre outros atributos. Ao longo do ano, há vários momentos de denúncias contra o racismo e de mostras memoráveis da competência do povo negro e, em especial, das mulheres negras.
Entre essas diversas datas, temos o 25 de julho , quando comemora-se o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e também o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra (data instituída pela Lei n° 12.987/2014, para homenagear a líder do Quilombo Piolho, em Mato Grosso. Esse ponto de escravidão abrigava negros e índios e Tereza é chamada de rainha e coragem para enfrentar os algozes dos negros.
Na mesma data, ocorre também o Festival Latinidades, que nasceu em Brasília, por iniciativa do Instituto Afrolatinas, e hoje ocorre em Salvador (BA), Goiás e São Paulo. Este ano, foi a 17ª edição do evento, com o tema “Vem ser fã de mulheres negras”, a fim de destacar a força transformadora das mulheres e lembrar que, em uma sociedade racista e machista, é revolucionário ser fã das suas iguais.
Em 2021, por iniciativa da escritora e jornalista Waleska Barbosa, foi realizada a primeira edição do Julho das Pretas que Escrevem no DF, que passou a fazer parte do Latinidades a partir de 2022. Um espaço destinado às negras escritoras da capital da República, tanto no jornalismo quanto em produções de livros, poesias e por outros meios, lançando luzes sobre as que vivem na periferia — ou nas quebradas, como elas se identificam. Em 2024, a quarta edição do evento homenageou sete escritoras de gêneros como poesia, conto, crônica e romance.
Com muita justiça, o Julho das Pretas que Escrevem no DF, lançou o troféu Jacira Silva, um prêmio que reconhece o trabalho de profissionais e mídias negras de todo o Brasil. Um reconhecimento, em vida, da jornalista, a primeira mulher negra a presidir o sindicato da categoria na capital do país e a sua incansável luta contra quaisquer formas de preconceito e racismo — uma intrépida guerreira. Embora o Brasil seja um país de um povo miscigenado, onde pessoas de quase todo o planeta se encontram e se unem, ainda não passa de utopia a democracia étnica-racial. Lamentável.
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