Joana e o altruísmo político


Por Zulmira Quinté

Segunda-feira (8/10), logo depois do almoço, por volta de 13h30, sobrou-me um tempinho para abrir um jornal de circulação nacional e ver a repercussão das eleições municipais em todo o país. Na capa, o diário deu conta da excepcional virada de um estreante na disputa eleitoral paulista. Após ser um dos últimos no ranking de candidatos, o novato conseguiu chegar ao segundo turno para disputar o Executivo municipal contra um experiente político, que tem elevado índice de rejeição. O então primeiro colocado, representante de um segmento religioso que explora a boa-fé dos incautos e vandaliza adeptos e templos das religiões de matriz africana, foi excluído da corrida eleitoral. Comemorei, em silêncio.

Segui passando as páginas, e deparei-me com um artigo sobre o fim da remuneração dos vereadores, de autoria do professor e doutor de direito processual da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP e juiz eleitoral Fernando da Fonseca Gajardoni.  Ele comentava a proposta de emenda constitucional, em tramitação no Congresso Nacional, que elimina o pagamento de subsídios a vereadores de municípios com menos de 100 mil habitantes. De acordo com a emenda, nada impede que políticos de cidades pequenas exerçam, ao mesmo tempo, suas atividades produtivas e a vereança. O corte da remuneração aos integrantes do Legislativo municipal implicaria economia substancial  de recursos públicos. Assim, sobraria mais verba no caixa da prefeitura para investimentos em saúde, educação, lazer e outras melhorias demandadas pela comunidade.

Nas primeiras linhas do artigo, como ato reflexo, o mais rápido mecanismo de estímulo do ser humano, lembrei-me de Joana Camandaroba, que conheci octogenária, no município de Barra, no oeste baiano, há mais de uma década. Eu participava de uma expedição cultural-científica-ambiental pelo Rio São Francisco, que tinha a missão de fazer uma avaliação preliminar sobre os impactos da transposição das águas.

Na ocasião, o Velho Chico, que começamos a percorrer em Pirapora, estava alquebrado. O assoreamento, devido ao desmatamento das margens, o deixou enfraquecido. Das suas águas muito pouco alimento podia ser retirado. Os peixes pareciam mais amostra grátis, do que um elemento essencial à culinária local. Chico foi combalido com a chegada dos vapores trazidos lá do Mississipi, no sudoeste dos Estados Unidos.

Por anos, o patrimônio ambiental nutriu as embarcações ianques que reinavam de cima a baixo do curso d’água, que bem cumpriu  —  e ainda hoje cumpre —  o papel de ser elo entre os municípios mineiros e baianos ribeirinhos. Ao lado da fé de todos os matizes, o rio inspirou paixões, cantilenas e foi cenário de histórias infindáveis de pescadores, lavadeiras, pequenos agricultores e artistas carranqueiros, sem contar com as peripécias da meninada, nascida naqueles rincões esquecidos pela República.  Quando o patrimônio verde do Velho Chico ficou longe das margens, os vapores perderam sentido e foram abandonados, mas os danos ficaram lá, e, hoje, são desafios a ser vencidos.

Foi dentro da embarcação, movida a motor, que conheci Joana Camandoroba. Era fim de tarde. Ela, uma negra cintilante, não pelo brilho na face provocado pelo suor, mas pela voz serena, firme e por ser dona de histórias incomuns. Dedicou 40 anos, até onde se lembrava, à alfabetização da molecada nascida em Barra, Pilão Arcado e outros municípios às margens do São Francisco. Entre as muitas façanhas, Joana, filha do maior produtor de babaçu, exerceu o cargo de vereadora. “Sou do tempo em que vereador não ganhava um tostão”, contou ela. “No dia em que passaram a pagar salário para vereador, eu renunciei. Ora, se ninguém me pediu para ser vereadora, fui porque eu quis, como é que vou aceitar salário para defender o meu povo?”, justificou Joana, firme na sua posição contrária a pagamento de qualquer quantia a quem se candidata para representar setores da sociedade.

O exemplo de Joana, que foi amiga do Barão do Rio Branco, e dele guarda inúmeras relíquias em velhos baús, ressuscita com a emenda constitucional sob apreciação do Congresso. Ser legislador, hoje, como no passado, não é missão imposta a ninguém. É uma opção individual, movida pela vontade de servir à sociedade (ideologia rara), pelo desejo de conquistar um status social mais elevado, ou, vergonhosamente, pela ânsia de tornar o cargo trapolim para negócios (em boa parte escusos), que comprometem a arte da política.

Eliminar os ganhos dos parlamentares (pura quimera) seria  uma forma de depurar a atividade política e vivificar ideologias, construídas a partir dos anseios populares. Eu e, provavelmente, um incontável número de brasileiros não acreditamos na hipótese de aprovação da emenda, ainda que seja restrita para os legisladores de municípios com menos de 100 mil pessoas. Assim, Joana Camandaroba conquista um degrau mais elevado entre as muitas histórias que trafegam nas águas do Velho Chico. Altruísmo é comportamento represado no passado ou lenha queimada que virou cinza e seu perdeu como os vapores do Mississipi.

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