Democracia, ainda estou aqui
“Vamos sorrir, sim”. Ainda Estou Aqui conquistou o maior prêmio do cinema mundial, o Oscar, na categoria de melhor filme estrangeiro, com a obra do diretor Walter Salles. Um prêmio, até então, inédito para a cinematografia nacional, que encheu os brasileiros de orgulho e alegria: “Vamos sorrir, sim”. O Brasil é um país rico de talentos, nas mais diversas expressões da arte e da cultura. Em pleno carnaval, o país parou e abriu alas para assistir ao momento histórico que ocorreu no teatro Dolby Theatre, na cidade de Los Angeles, na Califórnia.
A torcida para que Fernanda Torres ganhasse o prêmio, como melhor atriz, era da maioria dos brasileiros. Mas ela pressentiu que não traria a estatueta. Em um gesto de sororidade, ela torceu pela atriz norte-americana Demi Moore, protagonista do filme A Substância, e que há 40 anos, como atriz de cinema, nunca foi premiada. Torres desejou, e foi atendida, que o Oscar fosse dado ao filme, pelo trabalho de Walter Salles, à Eunice Paiva, principal personagem, por ela interpretada, à família Paiva e a Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que deu nome ao filme e a todos que participaram da produção.
O tema de Ainda Estou Aqui chega em momento em que o Brasil está dividido entre a democracia, como estabelecida pela Constituição Cidadã de 1988, e o retrocesso ao período mais obscuro e letal da história republicana, ao longo de 21 anos (1964-1985). O legado da ditadura foi terrível com supressão das liberdades individuais, tortura e morte aos não alinhados à brutalidade do regime, aos defensores da democracia, e social e economicamente estagnado. Em 1971, o ex-deputado Rubens Paiva foi uma das vítimas do regime e seu corpo nunca foi encontrado.
O filme ganha espaço no debate político, logo depois do terrível episódio de 8 de janeiro de 2023, quando ocorreu o atentado que visava amordaçar a democracia e ressuscitar a ditadura militar. Ainda Estou Aqui provocou reflexão a mais de 5 milhões de pessoas que lhe assistiram, lotando as salas de cinema. O mais interessante é que Ainda Estou Aqui atraiu parcela expressiva de jovens, sem conhecimento real da ditadura, um regime de mãos de ferro e impiedoso. Ainda Estou Aqui mexeu com a legislação brasileira.
Hoje, o atestado de óbito dos mortos e desaparecidos reconhece que essas pessoas foram mortas pela violência do Estado — algo até então inimaginável — resultado da luta de Eunice Paiva. Antes mesmo do filme, o Ministério Público havia retirado dos escaninhos do passado processos abertos por familiares que tiveram seus entes queridos desaparecidos, torturados e mortos, cujos corpos nunca foram encontrados. O fato mais marcante, na década de 1970, foi a ação do Exército na Guerrilha do Araguaia, em que a oposição se organizou para o enfrentamento da ditadura. Mais de 60 pessoas foram mortas e os corpos, nunca encontrados.
Diante da provocação do MP, o Supremo Tribunal Federal reflete sobre a “ampla, geral e irrestrita anistia” dada a civis e militares que estiveram envolvidos com a tortura, morte e desaparecimento das vítimas da ditadura, por meio da Lei nº 6.683/1979, aprovada durante o regime militar. Na prática, a lei garantiu a impunidade a quem cometeu crimes políticos no período, e se tornou um marco para a redemocratização do país. A revisão poderá dar novo destino aos autores de atos, até então, tidos como fatos consumados.
Ainda Estou Aqui é mais do que um belíssimo e irretocável filme. Antes de tudo, é um alerta para que as instituições nunca mais se divorciem da democracia. Trata-se de um regime que “está aqui”, conquistado a duras penas, com perdas irreparáveis. Cabe a todos os brasileiros cultivá-lo para sempre e torná-lo melhor. Para isso, é preciso escrever um novo roteiro que valoriza e respeita a vida, promove igualdade, equidade social e econômica, rechaça todas as formas de preconceito e de violência entre os iguais.
[Editorial, Correio Braziliense, 4/3/2025]
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