Menos um... negro

A maioria dos veículos se recusa a usar a palavra genocídio para definir o que vem ocorrendo com a população afrodescendente do Brasil. Restringem o significado de genocídio ao que ocorreu com os judeus na Alemanha, pela insanidade de Hitler. O nazista queria dizimar os judeus da face da terra. E o que pretende os sucessivos governos brasileiros quando viram as costas ao que ocorre com a população negra do país? O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Mapa da Violência, as publicações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e outras produzidas por instituições multilaterais ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU) destacam os homicídios de negros em taxas absurdas quando comparadas com as de mortalidade de brancos pela violência, sobretudo pela ação da polícia.

O Brasil está na lista dos países violentos, com índices que superam os de nações em guerra civil. Isso não tem importância, pois a maioria que morre é negra. Mas a morte de um jovem negro a cada 21 minutos não se enquadra no conceito de genocídio. Enquadra-se em qual conceito?

Incompreensível que na esfera do Judiciário, as agressões verbais contra os negros, os comparando aos primatas, sejam vistas como "injúria racial", quando é um comportamento explícito de racismo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram que o brutal assassinato do negro João Alberto Silveira Freitas, por seguranças de um supermercado em Porto Alegre foi movido por racismo. Foram iniciativas individuais protocolares, que não chegam a comover.

Se fosse um homem branco que, por quaisquer motivos,  tivesse pronunciado algo desagradável contra uma funcionária do supermercado, ele seria arrastado para fora do estabelecimento, espancado e asfixiado com o joelho de um segurança até a morte? Isso não ocorreria. A turma do “deixa disso” estaria lá de plantão para conter a brutalidade. Ou melhor, os seguranças não ousariam encostar um dedo em um homem branco, mas tentariam acalmá-lo, contornar a situação. Agressão, jamais.

Amanhã e depois, os racistas seguirão agredindo verbalmente os indivíduos negros, poderão cuspir-lhes na cara, humilhar e depreciá-los. Se, porventura, forem condenados, a pena não passará de doações de cestas de alimentos aos despossuídos, desde que não sejam negros. Outros, mais afoitos e acobertados pela minoria não negra, vão matar mais negros e negras. Não duvidem que por meio das “brechas legais” ou de mecanismos de postergação não serão privados de liberdade. São úteis aos que odeiam os negros, no país de negacionistas de plantão, para os quais a morte evitável não passa uma contingência de um episódio imponderável, circunstancial.

Assiste-se, diariamente, a cenas deploráveis de violência contra as pessoas negras. As mortes são seletivas, como bem revelam os dados sobre a desigualdade racial no país. É no corpo de crianças, jovens e mulheres que as balas perdidas são encontradas. E daí? Por caso, vidas negras importam? Não. A negativa não parte só dos não negros. Entre os afrodescendentes, há uma expressiva massa que é indiferente à morte de seus iguais. Muitos não reconhecem a sua ancestralidade de origem africana. Foram contaminados, ao longo da vida e pela ausência de informação e formação, pela hegemônica cosmovisão eurocentrista. Para eles, o bom, o bonito, o belo, o aceitável e o correto são branco. Qualquer outro tom é visto com desconfiança. Não é perfeito e deve ser rejeitado.

Trata-se de fratura secular, provocada por uma estratégia perversa do colonizar que dividiu os negros entre a Casa Grande e a Senzala. Quem ocupava a casa grande, ainda que fosse igualmente escravo, sentia-se superior aos que ocupavam a senzala. Essa compreensão foi e é alimentada de maneira torpe pelos exploradores europeus e se consolidou. Tornou-se pilar da estrutura do Estado. Hoje, o racismo estrutural é argamassa das construções institucionais.

A desconstrução do racismo estrutural não é luta apenas de negros. A consciência não é só negra. Ela é branca, amarela, vermelha, azul, verde… Enfim, de todas  as cores para que o país, a sociedade atinjam um patamar de civilidade compatível com a racionalidade humana e com os valores inerentes ao século 21. A incivilidade é antítese da vida. É a parceira da barbárie, companheira inseparável da morte.


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