Escravidão não tem graça

Rosane Garcia

“Extra, extra, atenção! Não compre escravo hoje! É que amanhã é dia de megapromoção aqui nas Escravas Bahia”, avisa o ator que orienta o quadro humorístico, parodiando os comerciais de produtos industriais. A cena foi seguida de outra: “Cabindas, Guinés, Angolas! O feitor ficou maluco! Quer açoitar quantos?”. E para arrematar, o locutor avisa: "É isso mesmo! Compre dois escravos de engenho e leve uma ama de leite inteiramente grátis! Escravas Bahia: Servidão total pra você!”

Quando vi o episódio, exibido na telinha, no último dia 12, veio à lembrança as manifestações ocorridas em 27 de janeiro deste ano em países da Europa e no Brasil. A data celebrou os 70 anos da libertação dos judeus do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, pelos soviéticos integrantes do Exército Vermelho, e reverenciou a memória de cerca de 1,3 milhão dos mortos nas câmaras de gás ou sob tortura a mando de Adolf Hitler.

O terror patrocinado pelo nazismo é um dos maiores e mais vergonhosos crimes contra a humanidade. Mas o que dizer da escravidão que perdurou por mais de 300 anos somente no Brasil e foi reconhecida também como crime contra a humanidade?

Dos cerca de 13 milhões de negros trazidos para as américas, mais de 5,5 milhões desembarcaram no Brasil. Foram jogados em senzalas que pouco ou nada se diferenciavam dos campos de extermínio de judeus. Em terras brasileiras, eles foram submetidos a açoites, violência sexual, execuções por espancamento, separação dos familiares.

Os afrodescendentes não esperam do Brasil mea culpa pelo holocausto dos antepassados. No país, as leis que condenam a prática são ignoradas no meio rural e, mais recentemente, no espaço urbano, onde famosas grifes da moda utilizam mão de obra escrava para produção de modelitos que alimentam as lojas dos grandes centros de consumo. A abolição virou ficção histórica.

Em 1995, o governo brasileiro admitiu oficialmente a existência do escravagismo no país. Em 20 anos, apenas cerca de 50 mil pessoas foram libertadas dos cativeiros pelos fiscais do Ministério do Trabalho — o número é inferior ao real, vez que as equipes de fiscalização são insuficientes para monitorar todo o território nacional.

Hoje, pretos, pardos e brancos de baixa renda são alvo dos escravagistas, que contam com o apoio dos políticos. No fim de 2014, no Senado, os escravocratas conseguiram, por meio de emendas, mudar o conceito de trabalho escravo no artigo 149 na revisão do Código Penal e, assim, diminuir as chances de punição dos aproveitadores da exploração degradante da mão de obra dos trabalhadores. Tiveram sucesso também na regulamentação da PEC do Trabalho Escravo, que subtraiu direitos dos trabalhadores e proibiu a divulgação do nome de empresas e latifundiários que tratam os empregados como escravos  — cena amparada pelo Judiciário. É mais um esquete do teatro de horrores, com patrocínio de legisladores.
(Foto: Internet) - Artigo publicado pelo jornal Correi Braziliense - 23/2/2015

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