Um tiro disparado por muitas mãos


Zulmira Quinté

Uma menina de 14 anos mata um turista com um tiro no peito e deixa uma família órfã. A notícia estarreceu quem a ouviu pelo rádio, na tevê e leu o noticiário na última terça-feira. Mais um crime por motivo fútil deixa mais uma nódoa na imagem do país, visto como violento. O fato reforça a posição daqueles que defendem a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente, a redução da maior idade penal e a aplicação de penas mais severas aos adolescentes infratores. Não é para menos.

As cenas do cotidiano urbano são perturbadoras. O avanço do consumo de crack entre jovens; a associação da violência ao uso de entorpecentes, que levam à imediata dependência química; os sequestros relâmpagos praticados por menores; e, na sequência, eles aparecem envolvidos em latrocínios, homicídios e estupros, sem contar com os assaltos e arrastões. É muita coisa errada, que avilta o cidadão, a mulher, o idoso e expande a sensação de medo, desconfiança e insegurança.

Todos esses temores são exclusivos de cada indivíduo e, coletivamente, formam uma onda tissunâmica de pânico. O conjunto da sociedade responsabiliza os agentes de segurança pública. O tema vira bandeira de candidatos a cargos eletivos e alimenta organizações não governamentais dos mais variados gêneros e graus.

E a menina que matou o turista? Ela não é primária no mundo da criminalidade. Segundo a autoridade policial, a adolescente já esteve apreendida por tráfico de drogas. Mas quem é essa criatura de 14 anos que tem força para empunhar um revólver, dispará-lo com desenvoltura, virar de ponta a cabeça uma família inteira, chocar um país e ganhar espaço no noticiário internacional?

Ela seria mais uma jovem infratora, como tantas outras que vagam pelas ruas, no submundo das avenidas? Não seria resultado do nosso preconceito, da nossa repulsa dos menos abastados e da nossa indiferença às questões sociais que tornam o nosso país menor pela tamanha riqueza que possui? Não seria o revés do nosso descompromisso com a eleição de deputados, senadores e governantes em todas as esferas de poder? Deixamos correr frouxo. Concordamos ou desaprovamos os anúncios das políticas públicas durante um bate-papo na mesa de chope ou no churrasco de fim de semana, entre amigos e conhecidos. 

Queixamo-nos quando os setores mais organizados da sociedade congestionam o trânsito, pois querem pressionar parlamentares e autoridades em defesa dos seus direitos e interesses.  Eles estão errados ou nós somos apáticos e indiferentes, e somente sabemos reclamar ao menor sinal de desconforto?

Aquela menina de 14 anos, que provavelmente nunca teve uma mãe amorosa, um pai interessado, ou recebeu um cafuné entre os cabelos, não puxou o gatilho sozinha. Nossas mãos estavam lá e imprimiram mais segurança no momento em que ela acionou o revólver. Eram as mãos que votaram errado e não se ergueram em protesto. São as mesmas que nunca são estendidas aos jovens que, ao redor da Rodoviária do Plano Piloto, se nutrem de crack. O nosso olhar não os alcança, pois viramos o rosto a fim de não enxergar a mazela juvenil. Também não somos capazes de erguer a cabeça para cobrar dos eleitos ações relevantes e transformadoras do cotidiano urbano. Nossa capacidade de reclamar está desconectada das nossas ações. Falamos, mas não agimos. E, assim, nos somamos aos protagonistas da violência pela indiferença e omissão e, no fim, como eles, banalizamos a vida.

* Zulmira Quinté
60 anos, artesã

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