Joca, o cão e os negros

A morte de um cão dentro do espaço reservado a bagagens de uma aeronave de Gol mobilizou a sociedade. Os justos protestos ocorreram em Brasília e em outras cidades do país, pois cães e outros animais não são bagagens, mas, sim, seres vivos, que devem ser respeitados.  Cães e gatos de estimação fazem parte da vida das pessoas, mexem com o emocional dos seus tutores. A perda deles abala as pessoas e causa profunda dor e tristeza. 


Não quero sequer imaginar quando o meu Dexter, ou o Tico, ou a Nina morrer. Sinto tristeza só em pensar. Dexter (nome inspirado em personagem do antigo desenho animado do laboratório homônimo) é cão de alerta.  Ante qualquer movimento, ele late desesperadamente. Mas quando chego, ele se curva dengosamente para ser acarinhado. Adora um afago. Ele está velho e dá sinais de que seu vigor vem caindo aos poucos. 


Os irmãos Tico e Nina são bem novos — completaram um ano em dezembro último. Logo que chegaram, não foram bem aceitos pelo Dexter, que ficava irritado com as tentativas de brincadeiras do Tico e da Nina. Mas com a convivência, Dexter os aceitou. 


Os três foram jogados em contêineres de lixo e resgatados por pessoas de boa alma e eu os aceitei como doação. Dexter e Tico são os mais inquietos quando chega algum estranho em casa. Nina é dócil, pouco late e ama ser afagada. Ela sempre foge do assédio do Dexter e do Tico, e fica brava. Não imagino a casa sem nenhum deles. Compreendo a dor do dono do Joca, cão que morreu no avião da Gol. Uma perda irreparável.


Entendo também e admiro a solidariedade de todos que têm cachorros de estimação ao jovem. Dezenas de tutores foram ao Aeroporto Internacional de  Brasília manifestar indignação pelo ocorrido com Joca, um ato organizado pelo  Clube Golden de Brasília. O mesmo ocorreu em aeroportos de São Paulo. Atos que ganharam bom espaço nos meios de comunicação. Até o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, cobrou da empresa área resposta à morte de Joca — um gesto, antes, nunca visto.


Mas lamento que essa consternação não ocorra quando crianças, jovens, mulheres e homens negros são vítimas dos agentes de segurança pública, na maioria das cidades brasileiras. Hoje, os policiais não poupam nem os cegos, como ocorreu no litoral norte de São Paulo. Os argumentos são os mais mentirosos que possamos imaginar na maioria das ocorrências. As cenas degradantes protagonizadas pelos policiais revelam o quanto o preconceito e o racismo estão impregnados nas corporações do Estado. Basta ser preto ou pardo para ser suspeito de um ato ou uma infração criminal. Intrigante, é que morrem, quase sempre, com tiros pelas costas. As balas perdidas são achadas em corpos de crianças negras.


Mas a sociedade não vai às ruas, às portas das delegacias nem diante dos tribunais para cobrar, como deveria, a punição dos atos de selvageria contras seres humanos negros. Não há um gesto de comoção nesses casos, exceto de familiares e amigos das vítimas. Mas tudo é muito passageiro. Nos veículos de comunicação, os episódios são notícias durante um dia, no outro, há repercussão do fato, com depoimentos que se tornaram jargões desprezíveis das autoridades. Mas, ao fim e ao cabo, não se tem notícia sobre a punição dos autores das mortes e chacinas. O culpado nunca aparece à opinião pública. No máximo, os suspeitos, se são policiais, como geralmente acontece, são afastados das ruas e realocados em algum cargo burocrático da organização policial.  Caso encerrado.


Difícil não concluir que a vida de um cão — e aqui não vai nenhum menosprezo aos animais — tem mais importância e capacidade de sensibilizar multidões do que as execuções e mortes de pessoas negras. Uma realidade terrível e um desprezo absurdo e inominável em um país, onde a maioria é de pessoas pretas e pardas, cujos ancestrais escravizados foram, e muitos ainda o são, o alicerce do desenvolvimento e da riqueza dos clãs não negros. A moeda de remuneração para os pretos é o racismo, o preconceito e a morte indigna. Viva o Brasil da falsa democracia racial!


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