Livrai-nos do nosso veneno
[Rosane Garcia, jornalista] Feriado prolongado. Aproveitei a folga para acabar de ler autobiografia da atriz norte-americana Viola Davis, uma mulher negra, que teve uma vida de adversidades, conheceu a extrema miséria, foi violentada, vítima do racismo, superou obstáculos, perseguiu seus objetivos e conquistou seus sonhos. Venceu o Oscar de coadjuvante com o filme Um limite entre nós, em 2017; o Emmy, em 2015; e outros por suas atuações na tevê.
Enquanto encerrava a leitura, estava ouvindo música — um luxo que há tempos eu não me dava —, e eis que ouço a inesquecível Beth Carvalho cantando uma das mais belas canções da argentina Mercedes Sosa — Eu só peço a Deus (Solo Le Pido a Dios) —, outra gigantesca diva do cenário musical latino-americano. Tanto Beth quanto Sosa deixaram este plano material e estão em alguma linda camada do universo.
A música é uma súplica para que não sejamos indiferentes às mazelas sociais, um comportamento que suprime das pessoas a condição de humanos, e tem muito a ver com episódios de Viola Davis, das mulheres negras, da miséria e da violência, ou seja, com a realidade em que vivemos e testemunhamos no mundo todo.
A canção, com toda a sua suavidade e beleza, exige de nós mais atenção e visão crítica dos fatos políticos, econômicos e sociais. Cobra-nos não fechar os olhos às dores e, do jeito que pudermos, ser solidários aos mais fragilizados. A guerra é conceituada como “... um monstro grande e pisa forte/toda a pobre inocência dessa gente” — inquestionável. Daí vem a lembrança das imagens de crianças ianomâmis famélicas pela fratricida ação mercenária de garimpeiros invasores de suas terras, encorajados e incitados por um então poder desalmado e movidos pela ganância desmedida. Uma situação inominável, em que o vil metal tem valor superior ao da vida humana. Quanta pobreza e desumanidade.
Outro verso da música sacode a alma e a dignidade humana, sobretudo a minha, uma mulher negra que há mais de duas décadas passou dos 40 anos, o que me coloca, como tantas outras, na mira dos etaristas ou dos velhofóbicos. E aí é preciso transcrever a estrofe: “Eu só peço a Deus/ Que a injustiça não me seja indiferente/Pois não posso dar a outra face/Se já fui machucado brutalmente”. O machucar o povo negro é missão diária dos racistas.
A gigantesca parcela do povo negro, do qual faço parte, trava uma guerra deflagrada há mais de cinco séculos pelos racistas, e a luta parece não ter fim. Torturaram, imolaram nossos ancestrais e insistem em preservar o igual comportamento, mesmo ante todos os avanços ocorridos no mundo. Uma batalha alimentada pela injustiça da Justiça, cujos olhos vendados permitem que prevaleça a impunidade àqueles agressores de pretos e pardos.
A indiferença à dor do outro estimula a expansão da crueldade e da covardia contra as mulheres. Eis o aumento dos feminicídios. O silêncio em relação ao sofrimento alheio permite o surgimento de um corredor da morte, pavimentado pelo ódio contra pessoas que não são vistas como humanas, mas como “diferentes”: indígenas, quilombolas e LGBTQIAP+. A canção sugere que é preciso substituir a indiferença pela sororidade, solidariedade e compaixão, e romper o silenciamento com um grito de “basta”.
Por fim, resta pedir a Deus para ficarmos atentos “…se um só traidor tem mais poder que um povo/Que este povo não esqueça facilmente”. Impõe-nos reflexão no momento das escolhas para que não sejamos vítimas das armadilhas dos falsos profetas, ou para que não sejamos os traidores, ou os alquimistas do nosso veneno.
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