Resistir sempre, com arte e sabedoria
25 de julho, Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha
Pretas do DF que escrevem reunidas em um dos palcos do Festival Latinidades 2022 |
"Eles combinaram nos matar. A gente combinamos não morrer",
escreveu Conceição Evaristo, escritora negra, criada em uma favela em Minas
Gerais. A combinação permanece em um Brasil onde o racismo estrutural é
cultivado e incentivado pelo Estado. A última versão da Constituição (1988)
assegura que todos são iguais perante as leis. Não é bem assim. No triângulo de
poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), a aplicação da lei, ou
não, está colada à cor da pele. Um padrão em que os negros e negras ainda não
são vistos como seres humanos.
Os brancos, ainda que sejam minoria na composição demográfica do país, detêm
a hegemonia nas instâncias de decisão. E seguem uma orientação do então
presidente Getúlio Vargas aos imigrantes europeus de beneficiar e cuidar dos
seus iguais. Ou seja, tratamento equânime e oportunidades só para os brancos.
Uma construção racista do século 16.
Não conseguimos ainda atravessar os minados terrenos do Judiciário e da
segurança pública. Com raríssimas exceções, quase imperceptíveis, nesses dois
setores, os negros que desconhecem sua origem ou a negam agem como os capitães
do mato: aprisionam, torturam e matam o seus iguais. As cenas nas comunidades
de periferia, no Rio de Janeiro, são inquestionáveis. Como explicar as balas
perdidas encontradas em corpos negros? O racismo cotidiano foi banalizado, bem
como a morte dos negros pela mãos dos representantes do Estado.
A igualdade de direitos, estabelecida pela Constituição, figura como letra
morta. A balança da Justiça sempre tende
a pesar mais em relação aos pretos e pardos, que são maioria nas prisões, nas
taxas de desemprego, nos índices de mortalidade pelas mãos das forças de
segurança. As mulheres e as crianças negras são mais violentadas sexualmente.
Os algozes, no entanto, esqueceram, ou não deram importância ao nosso
compromisso: "a gente combinamos não morrer". A nossa trajetória de
resistência, o nosso desejo de viver e não deixar matar os nosso iguais têm
efeito corrosivo nas estratégias dos não negros. Por mais difíceis que sejam os
obstáculos, conseguimos transpô-los na educação, na ciência, na tecnologia, na
saúde, na preservação da cultura e dos costumes de nossos antepassados e ancestrais.
Como "combinamos não morrer", frustramos nossos oponentes. Hoje
(25/7), comemoramos o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha.
É delas que falamos: Mulheres negras brilharam na literatura, como trabalhos
inspiradores, e que merecem, honrosamente, serem lembradas em todos os tempos.
Maria Firmina dos Reis, maranhense, nascida em 1822, autora do romance Úrsula,
publicado em 1859, e tido como o primeiro romance de uma mulher no Brasil. Carolina
Maria de Jesus, nasceu em 14 de março de 1914, em Minas Gerais, e seguiu para
São Paulo. Como compositora e poetisa, ela escreveu Quarto de Despejo: Diário
de uma Favelada, um clássico, traduzido e publicado nos Estados Unidos, além de
outras obras.
Lélia Gonzalez, filósofa, antropóloga, cujos estudos atravessaram mares e se tornaram referência a pesquisadores e estudiosos, apontou caminhos para as feministas, além da militância no movimento negro, contra o racismo e o reconhecimento de direitos do povo afrodescendente. A mineira Conceição Evaristo escreveu Ponciá Vicêncio, obra publicada em 2003 e que se tornou um marco da literatura negra ao abordar a discriminação por raça, gênero e classe.
Muitas outras mulheres negras contribuíram com obras icônicas para a literatura
brasileira e tiveram seus livros reconhecidos. Muitas outras ainda precisam ser
reconhecidas em níveis superlativos. Isso ficou bem nítido no Festival
Latinidades 2022 (foto), realizado no Museu Nacional da República. Um dos
palcos do evento recebeu a segunda edição do Julho das Pretas que Escrevem no DF. Um desfile de pequenas, mas
grandiosas, mostras de trabalhos literários produzidos pelas mulheres da
periferia ou do centro da capital da República, mas pouco conhecidos pelo
grande público. Um espetáculo que, pela primeira vez, chegou ao Latinidades,
levado pelas mãos da jornalista e escritora Waleska Barbosa.
O festival mostrou que o povo negro está vivo e mais fortalecido. Exibiu
mulheres mais audaciosas e sem disposição se aquietar ante o machismo, o
racismo ou quaisquer atitudes que as depreciem ou tentem subjugá-las ao
patriarcalismo e ao machismo. Recusam-se a ficar inertes diante da violência.
Elas são parte do acerto: “a gente combinamos não morrer”.
Rosane Garcia, jornalista
Comentários